Atuante em Medellin, na Colômbia, há mais de 25 anos, Corporación Amiga Joven integra o Projeto Regional Interpaz desde o seu marco inicial, em 2019. No contexto da pandemia de Covid-19, a organização buscou adaptar sua abordagem e articular-se a partir das necessidades de crianças, jovens e pessoas adultas que dão corpo à Escola Popular de Gênero e Formação Sociopolítica e participam da elaboração de um manual para construção de paz com justiça de gênero (que será lançado em breve).
Para garantir a participação de crianças, adolescentes e jovens nesse período, as educadoras da organização (que é composta por uma equipe 100% feminina), buscaram estratégias, como oferecimento de suporte escolar e atividades de integração e dinâmicas virtuais que mantivessem o interesse das e dos participantes.
Em entrevista ao Interpaz, a coordenadora do projeto na Colômbia, Marian Nathalia Torres T., explica também como se desenvolveu uma formação sobre masculinidades não-hegemônicas, que busca conscientizar homens jovens sobre as questões de gênero. “Percebemos que durante a pandemia, eles conseguiram identificar essas questões em casa, e passaram a questionar certos comportamentos de seus pais com relação às suas mães, por exemplo.”
Como funciona a Escola de Gênero e Formação Sociopolítica?
Marian Torres: A atuação de base com crianças começou em 2014. Iniciamos o processo com meninas de 9 a 14 anos, buscando incorporar o projeto à cidade [de Medellín], partindo dos bairros periféricos, levando Amiga Joven até elas e eles. Devido a certa insegurança nesses locais, algumas mães e cuidadoras não permitiram que as meninas fossem sozinhas às atividades. Isso gerou a necessidade de incluir essas mulheres no processo, até mesmo como forma de valorizar o tempo que estavam ali na nossa organização. Assim, elas foram incluídas às atividades. Porém, a diferença de idade e o vínculo entre elas ocasionou uma diminuição da confiança e das participação das meninas. Foi então que se criou um grupo independente apenas para as mulheres adultas.
Como a abordagem da Escola foca na resolução de conflitos, buscamos sensibilizar sobre a violência de gênero, ainda mais porque a população tem uma realidade muito delicada nesse sentido. Foi pensando nisso que surgiu o grupo de masculinidades não-hegemônicas, uma estratégia para formar homens com relação às questões de gênero. Percebemos que eram os que menos se envolviam na Escola, por medo de fazer parte do grupo e terem a sua heterossexualidade questionada ou serem taxados como violentos. Neste caso, a participação tem sido de homens gays e transexuais, e uma procura maior de homens heterossexuais começou em 2020.
Às vezes, chegam crianças mais novas e a integração entre todas e todos os participantes vai complementando os processos, gerando outros interesses nas crianças, jovens, adultas e adultos que transitam pelas atividades da organização. Isso leva mais participantes à Escola de Gênero ou ao grupo de masculinidades, por exemplo.
De que forma obtêm o compromisso de participação nas atividades?
Para engajar meninas e meninos, uma estratégia é o contato de “crianças-chave”, que atuam como líderes em seus bairros e ajudam a manter a comunicação entre as e os participantes. Também há uma organização vizinha à nossa, e isso facilita porque as crianças acabam transitando pelos dois espaços.
É um trabalho constante. Há momentos em que não voltam aos encontros e há apenas 5 pessoas nas atividades. Essa ausência nos mostra que há dificuldades, especialmente, porque muitas vezes não têm o apoio de suas famílias para estar lá.
Em outros momentos, querem desafogar suas questões e participam assiduamente. Entendemos que há um contexto em que, em algumas casas, vivem 10 pessoas de uma família, por exemplo, e não há sentimento de pertencimento. É difícil construir o tecido familiar e a aproximação entre as pessoas. Por isso enxergam a Amiga Joven como um espaço protetor, e os professores veem essa possibilidade de apoio.
Na pandemia, foi possível promover uma aproximação com seus tutores ou familiares, especialmente por conta das ações de apoio humanitário e de contenção do novo coronavírus. Porém, surgiram outras barreiras, como conexão via internet ou telefone, a que alguns não tinham acesso; outros, como crianças pequenas, precisam esperar a disponibilidade de seus tutores para usar o celular.
Como meninas e jovens participam das ações de Amiga Joven?
É uma construção. Meninas e meninos que são identificados como líderes ao longo do processo atuam dessa forma para os trabalhos internos e vão desempenhando mais tarefas. Depois disso, há casos de mulheres que participaram de formações e acabam originando outras ações. Um resultado da Escola de Gênero e Formação Sociopolítica, por exemplo, é o Colectiva Autónomas. Um grupo de mulheres que se interessou em propor formações para autonomia, liderança e fortalecimento feminino e já ganhou diversos editais do Fondo Lunaria, que capta recursos para projetos de mulheres jovens. Muitas outras começam a se especializar, fazer cursos e gerar projetos em seus bairros.
Há algum desafio especial para se aproximar dos homens na abordagem do tema da violência de gênero ou de novas masculinidades? Como vocês conduzem isso?
A dificuldade com os homens começa desde a convocatória: temos uma equipe feminina e, neste caso, buscamos um facilitador homem. Sabemos que há mensagens que “espantam” e esse facilitador consegue se comunicar de forma mais adequada a como eles se expressam e socializam.
Às vezes os homens querem “entrar na moda”, falar sobre esse tema e por isso estão lá. Então aprofundar a temática é um desafio, pois faz parte de um processo, não se pode começar do nada a falar de violência. Um novo grupo de masculinidades não-hegemônicas começa no ano que vem, e pretendemos ter um foco mais forte nisso, deixá-los mais confortáveis para aprofundar o tema.
Que estratégia Amiga Joven utilizou para manter o funcionamento da Escola durante a pandemia? E como se deu a criação coletiva do Manual de Paz [que vai compartilhar boas práticas da Escola]? Como as crianças participaram desse processo?
A partir de 2020, as educadoras resolveram desenvolver comunicações virtuais com participantes que tinham essa opção. Abordar o que significava a pandemia e o confinamento no contexto familiar, emocional e suas individualidades. Foi um dos primeiros aspectos desse trabalho. Depois, passaram a relacionar tudo isso com os demais temas da Escola de Gênero, de uma maneira incerta, pois não se sabia se poderíamos continuar ou teríamos que parar o processo.
Amiga Joven também se manteve presente no período enviando atividades para não deixar as temáticas de lado. Como os colégios utilizaram a mesma estratégia, isso nos fez perceber que as crianças precisavam de uma pausa temática e maior apoio com as tarefas escolares, por exemplo, já que muitas vezes não tinham esse respaldo familiar.
Assim, o manual [de paz] começou quando se viu a possibilidade de integrá-lo a essas tarefas, relacionando com o que estariam vendo na escola. Funcionou porque as metodologias e a aposta na construção do manual fizeram com que todas e todos estivessem muito motivados. O grupo, que tem pessoas de 11 a 50 anos, acabou se estendendo por um tempo maior do que imaginamos, e pudemos falar de diversos temas. Começamos 2021 com atividades virtuais e um cronograma para os encontros presenciais foi feito logo no início.
Para cada encontro, a meta é escrever uma coleção de reflexões feitas em grupo, o que ajuda a compor os assuntos do manual. O registro das experiências da Escola e a contextualização de conceitos são desenvolvidos pela nossa relatora. O que nós fazemos é articular os conceitos-chave de cada atividade do manual com um exercício, de forma que a metodologia seja adaptável e que uma pessoa sozinha possa também aplicar. Em breve, teremos um encontro para finalizar esse material: queremos aproveitar os desenhos das crianças e as entrevistas com participantes dos grupos.