16/12/2021

Atuante em Medellin, na Colômbia, há mais de 25 anos, Corporación Amiga Joven integra o Projeto Regional Interpaz desde o seu marco inicial, em 2019. No contexto da pandemia de Covid-19, a organização buscou adaptar sua abordagem e articular-se a partir das necessidades de crianças, jovens e pessoas adultas que dão corpo à Escola Popular de Gênero e Formação Sociopolítica e participam da elaboração de um manual para construção de paz com justiça de gênero (que será lançado em breve).

Para garantir a participação de crianças, adolescentes e jovens nesse período, as educadoras da organização (que é composta por uma equipe 100% feminina), buscaram estratégias, como oferecimento de suporte escolar e atividades de integração e dinâmicas virtuais que mantivessem o interesse das e dos participantes.

A foto mostra o rosto de Marian. Ela tem cabelos longos e escuros. Usa um brinco de argola
Marian Torres coordena o projeto Interpaz em Amiga Joven

Em entrevista ao Interpaz, a coordenadora do projeto na Colômbia, Marian Nathalia Torres T.,  explica também como se desenvolveu uma formação sobre masculinidades não-hegemônicas, que busca conscientizar homens jovens sobre as questões de gênero. “Percebemos que durante a pandemia, eles conseguiram identificar essas questões em casa, e passaram a questionar certos comportamentos de seus pais com relação às suas mães, por exemplo.”

Como funciona a Escola de Gênero e Formação Sociopolítica?

Marian Torres: A atuação de base com crianças começou em 2014. Iniciamos o processo com meninas de 9 a 14 anos, buscando incorporar o projeto à cidade [de Medellín], partindo dos bairros periféricos, levando Amiga Joven até elas e eles. Devido a certa insegurança nesses locais, algumas mães e cuidadoras não permitiram que as meninas fossem sozinhas às atividades. Isso gerou a necessidade de incluir essas mulheres no processo, até mesmo como forma de valorizar o tempo que estavam ali na nossa organização. Assim, elas foram incluídas às atividades. Porém, a diferença de idade e o vínculo entre elas ocasionou uma diminuição da confiança e das participação das meninas. Foi então que se criou um grupo independente apenas para as mulheres adultas. 

Como a abordagem da Escola foca na resolução de conflitos, buscamos sensibilizar sobre a violência de gênero, ainda mais porque a população tem uma realidade muito delicada nesse sentido. Foi pensando nisso que surgiu o grupo de masculinidades não-hegemônicas, uma estratégia para formar homens com relação às questões de gênero. Percebemos que eram os que menos se envolviam na Escola, por medo de fazer parte do grupo e terem a sua heterossexualidade questionada ou serem taxados como violentos. Neste caso, a participação tem sido de homens gays e transexuais, e uma procura maior de homens heterossexuais começou em 2020.

Às vezes, chegam crianças mais novas e a integração entre todas e todos os participantes vai complementando os processos, gerando outros interesses nas crianças, jovens, adultas e adultos que transitam pelas atividades da organização. Isso leva mais participantes à Escola de Gênero ou ao grupo de masculinidades, por exemplo.

De que forma obtêm o compromisso de participação nas atividades? 

Para engajar meninas e meninos, uma estratégia é o contato de “crianças-chave”, que atuam como líderes em seus bairros e ajudam a manter a comunicação entre as e os participantes. Também há uma organização vizinha à nossa, e isso facilita porque as crianças acabam transitando pelos dois espaços.

É um trabalho constante. Há momentos em que não voltam aos encontros e há apenas 5 pessoas nas atividades. Essa ausência nos mostra que há dificuldades, especialmente, porque muitas vezes não têm o apoio de suas famílias para estar lá.

Há um grupo de meninos e meninas e uma mulher adulta sentados em círculo. Ao centro, estão diversas mesas coloridas. As crianças estão mexendo em pedaços de linhas coloridas e todos usam máscaras devido à pandemia de Covid-19
Em 2021, Amiga Joven retomou encontros presenciais

Em outros momentos, querem desafogar suas questões e participam assiduamente. Entendemos que há um contexto em que, em algumas casas, vivem 10 pessoas de uma família, por exemplo, e não há sentimento de pertencimento. É difícil construir o tecido familiar e a aproximação entre as pessoas. Por isso enxergam a Amiga Joven como um espaço protetor, e os professores veem essa possibilidade de apoio.

Na pandemia, foi possível promover uma aproximação com seus tutores ou familiares, especialmente por conta das ações de apoio humanitário e de contenção do novo coronavírus. Porém, surgiram outras barreiras, como conexão via internet ou telefone, a que alguns não tinham acesso; outros, como crianças pequenas, precisam esperar a disponibilidade de seus tutores para usar o celular. 

Como meninas e jovens participam das ações de Amiga Joven? 

É uma construção. Meninas e meninos que são identificados como líderes ao longo do processo atuam dessa forma para os trabalhos internos e vão desempenhando mais tarefas. Depois disso, há casos de mulheres que participaram de formações e acabam originando outras ações. Um resultado da Escola de Gênero e Formação Sociopolítica, por exemplo, é o Colectiva Autónomas. Um grupo de mulheres que se interessou em propor formações para autonomia, liderança e fortalecimento feminino e já ganhou diversos editais do Fondo Lunaria, que capta recursos para projetos de mulheres jovens. Muitas outras começam a se especializar, fazer cursos e gerar projetos em seus bairros.

Há algum desafio especial para se aproximar dos homens na abordagem do tema da violência de gênero ou de novas masculinidades? Como vocês conduzem isso?
Dois meninos mostram escudos feitos em papel com desenhos coloridos
Crianças participam das atividades

A dificuldade com os homens começa desde a convocatória: temos uma equipe feminina e, neste caso, buscamos um facilitador homem. Sabemos que há mensagens que “espantam” e esse facilitador consegue se comunicar de forma mais adequada a como eles se expressam e socializam.

Às vezes os homens querem “entrar na moda”, falar sobre esse tema e por isso estão lá. Então aprofundar a temática é um desafio, pois faz parte de um processo, não se pode começar do nada a falar de violência. Um novo grupo de masculinidades não-hegemônicas começa no ano que vem, e pretendemos ter um foco mais forte nisso, deixá-los mais confortáveis para aprofundar o tema.

Que estratégia Amiga Joven utilizou para manter o funcionamento da Escola durante a pandemia? E como se deu a criação coletiva do Manual de Paz [que vai compartilhar boas práticas da Escola]? Como as crianças participaram desse processo?

A partir de 2020, as educadoras resolveram desenvolver comunicações virtuais com participantes que tinham essa opção. Abordar o que significava a pandemia e o confinamento no contexto familiar, emocional e suas individualidades. Foi um dos primeiros aspectos desse trabalho. Depois, passaram a relacionar tudo isso com os demais temas da Escola de Gênero, de uma maneira incerta, pois não se sabia se poderíamos continuar ou teríamos que parar o processo. 

Amiga Joven também se manteve presente no período enviando atividades para não deixar as temáticas de lado. Como os colégios utilizaram a mesma estratégia, isso nos fez perceber que as crianças precisavam de uma pausa temática e maior apoio com as tarefas escolares, por exemplo, já que muitas vezes não tinham esse respaldo familiar.

Assim, o manual [de paz] começou quando se viu a possibilidade de integrá-lo a essas tarefas, relacionando com o que estariam vendo na escola. Funcionou porque as metodologias e a aposta na construção do manual fizeram com que todas e todos estivessem muito motivados. O grupo, que tem pessoas de 11 a 50 anos, acabou se estendendo por um tempo maior do que imaginamos, e pudemos falar de diversos temas. Começamos 2021 com atividades virtuais e um cronograma para os encontros presenciais foi feito logo no início.

Para cada encontro, a meta é escrever uma coleção de reflexões feitas em grupo, o que ajuda a compor os assuntos do manual. O registro das experiências da Escola e a contextualização de conceitos são desenvolvidos pela nossa relatora. O que nós fazemos é articular os conceitos-chave de cada atividade do manual com um exercício, de forma que a metodologia seja adaptável e que uma pessoa sozinha possa também aplicar. Em breve, teremos um encontro para finalizar esse material: queremos aproveitar os desenhos das crianças e as entrevistas com participantes dos grupos.